quarta-feira, 14 de novembro de 2012

Sobre os cachorros e o céu




Ouvi uma vez que cachorros não vão para o céu. Assim disse um teólogo, “sábio doutor estudioso dos mistérios divinos”. Disse ele que isto se deve ao fato de que apenas os homens (no seu sentido amplo) possuem alma. Animais e plantas não possuem, e por isso quando morrem é o fim, simplesmente. Como assim simplesmente? Céu: mundo de almas desencarnadas. Quanta bobeira pra se ouvir num dia de sol! Concluí que na verdade muito pouco este “sábio” conhece de cachorros, e creio que muito pouco também sabe sobre o céu.
Em minha infância, sempre ouvi que existia um céu para cachorros, mas meu pai, sempre que morria algum cachorro meu, dizia que um era o céu, e este era para todos, pra gente, cachorros, gatos, periquitos e papagaios, árvores, e orquídeas. Ai que alívio! Imagina morrer e chegar num lugar onde só tem pessoas? Não ouvir o canto dos pássaros, não afagar o pêlo de um cão, não ter gatos se entrelaçando nas pernas, ouvindo apenas aquele chato blá blá blá, típico de pessoas quando se aglomeram.
Meu querido Rubem Alves (ao qual sempre declaro meu amor), pedagogo, poeta, filósofo, cronista, ensaísta, psicanalista e teólogo, certa vez escreveu: “Se Deus criou os bichos é porque os desejava e deseja. O céu vazio de animais é o céu de um Deus que fracassou (...) Deus gosta de bichos. Se ele gosta de bichos, eles serão ressuscitados no último dia”. Prefiro a opinião de Rubem Alves, à do “sábio doutor”.

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Perto demais




A angústia obriga-nos a abrir caminhos para os passos seguirem, causa movimento. É preciso renascer todos os dias, provocar ressurreições na alma. Isso exige coragem! Ora, a ressurreição acontece depois da morte. Muitas são as coisas que devemos deixar morrer em nós para renascermos diferentes, para conseguirmos prosseguir os caminhos escolhidos...

Sentou-se na areia da praia. Fazia frio, ventava muito, e a praia estava semideserta: somente ela e alguns pássaros que passavam por cima de sua cabeça, saindo de suas ilhas, todos em bando. Desejava ela mesma sair de sua ilha, ilha que ela própria criou, e que achava ser o lugar mais seguro para os seus pensamentos. Sairia talvez se tivesse mais alguém para acompanhá-la, mas nunca esteve tão sozinha como naquele momento, na verdade sempre se sentiu assim, sozinha, mesmo estando em meio à multidão.
Era mês de julho. Usava calça e blusa de moletom. E nos pés um chinelo muito velho com meias furadas. Gostava de ficar bem à vontade quando ia à praia admirar o mar. O mar estava extremamente agitado. Nunca tinha visto o mar daquele jeito, e dentro do seu peito, seu coração também batia agitado, como se fosse o próprio mar, quebrando junto com suas ondas toda paz que procurava naquela manhã.
Aquela ressaca do mar... gostaria de se jogar nela e ser lavada de toda imundície que sentia lhe corroer. Estava sem saída, não havia como sua vida melhorar... era assim que pensava, era por isso que aquele nó na garganta nunca desatava. Seus sonhos foram-se perdendo um a um e não possuía mais metas, não enxergava mais os caminhos para levá-la aos seus objetivos. Os caminhos já não existiam mais, nem os caminhos certos, nem os caminhos errados.
Seus olhos apertaram-se, e saiu uma gota pequena que logo foi tomando forma e percorrendo as linhas de seu pequeno rosto, chegando até seus lábios, onde enfim pôde verificar seu sabor salgado. Tornou-se repetitiva essa ação. Algumas lágrimas lhe salgavam o rosto, tal como a água marinha. Sentia-se como se tivesse entrado no mar.
Começou a chover e assim as gotas salgadas foram se confundindo com as gotas doces da chuva. Nem parecia mais que estava chorando. Até mesmo gostou daquilo. Fez diminuir-lhe a dor que sentia. As gotas que caíam do céu caíam cada vez mais e cada vez mais consistentes, enquanto as que eram produzidas por seus olhos cessaram completamente.
Seu corpo, agora inteiramente molhado, foi levantando-se lentamente. Já com os pés bem firmes no chão de areia molhada, abriu bem os braços, conduzida por uma sensação incrível de liberdade. Começou a rodopiar e a olhar para o céu, e sentia a chuva fria cair sobre seus cabelos longos e correr por todo seu corpo quente e renovado de novas emoções. Assim como a chuva, ela também caiu. Já estava tonta e agora descansava do esvaziamento que experimentou, esvaziamento de si. Olhava o mar...
O mar sempre lhe atraiu, e naquela manhã ele estava mais sedutor. Aquelas águas bravias que iam ao encontro das pedras e se espalhavam num tom melancólico... Tudo era digno de admiração.
Estava decidida a se purificar. Tirou sua roupa, peça por peça, e deixou-a espalhada na areia. Ainda chovia e o vento fazia um barulho assustador. Ainda pensou um pouco, não tinha mais nada a perder. Seu corpo nu e molhado dirigiu-se para o mar, pé ante pé, como num ritual. Aos poucos as ondas foram se aproximando, a maré começava a subir. Seus pés, pernas, cintura, foram aos poucos sendo engolidos pelas águas. Não relutava. Apenas seguia em frente cada vez mais. A chuva ficou muito forte e mal se podia enxergar o que se estava à frente.  E as águas bravias continuaram seu banquete de mãos, braços, seios, pescoço, e... Somente se ouvia o som do vento, da chuva e do mar batendo nas pedras. Ela mesma não ouvia mais nada. Desesperou-se. O ar começou a lhe faltar e o mar já lhe cobria completamente. Seus pés sem apoio, apenas aceitaram aquele destino.  E dela mesma só restaram as roupas jogadas na praia...

            Morte? Morte... e ressurreição!

domingo, 16 de setembro de 2012

Devaneio dominical





Alguma coisa mudou. Houve um tempo em que eu gostava de poetizar. É bem verdade que nunca gostei dos meus poemas, e hoje, quando tive a oportunidade de reler alguns dos meus devaneios colocados no papel, gostei menos ainda. Muito drama. E percebo que dramática ainda sou, talvez até um pouco mais que antes. Mas, resolvi ser diferente. Desejei sob o sol de domingo ser menos explosiva, menos impulsiva, menos egoísta, mais centrada e ao mesmo tempo menos apegada. Desejei respeitar mais as pessoas, e buscar caminhos que me fizessem me sentir em paz, mesmo que esta paz seja inquietante. Desejei admirar o vento, o mesmo vento que uma menina feinha, triste e cega denominou como indócil, em um poema que não gostei.

Indócil

Vem, vento, vagando veemente,
Vasculhando valas,
Vedando o vazio da vida.

Vem, velando o que é vago,
O que é vadio.

Vem, em forma de vaga-lume,
Com vasto brilho,
Vencendo a escuridão do olhar.

Vem, em forma de vapor,
Varrendo toda viscosidade
Que impede a vista de ver.

Vai agora, vento,
Vagarosamente,
Velho,
Veludoso,

Vai-vem com vontade,
Dando verdade à minha incitação.

sábado, 8 de setembro de 2012

O Deus aprisionado






Tudo sentia sua presença apaziguadora, mas ao mesmo tempo inquietante. Plantas, animais e até mesmo homens. Era como se pairasse por sobre o mundo e também dentro de toda vida que havia nele. E a cada um se manifestava de forma diferente. Ele era assim: metamorfose. E gostava de ser assim. A necessidade do olhar do homem era o que o fazia se apresentar de diferentes jeitos a cada ser. Assim, livre como pássaro, pairava sobre o mundo, e o homem, mesmo sem entender, sentia aquela força.
Mas acontece que o homem tem a necessidade de entender tudo, e o desejo de tomar tudo como seu. Para tomar aquela força-presença como sua, começou dando-lhe nome. E como ela se manifestava diferente para cada um, cada grupo de homens começou a chamar-lhe por diferentes nomes também. Mas como poderia ser vários e único ao mesmo tempo? Cada grupo de homens tentou defini-lo, caracterizá-lo, dizer o que ele pensa, o que ele diz, o que ele quer. E aquela força-presença tão livre, foi enquadrada. Aquilo que era tudo e nada, tornou-se pássaro engaiolado, produto dos pensamentos do homem sobre ele.
Cada homem, a favor do seu próprio ego, comparava o seu pássaro aprisionado com o do outro. E para cada homem o seu pássaro deveria ser o único, assim como a sua verdade, que era também única. Defendia os pensamentos do seu pássaro com afinco, afinal, na verdade, fazia dos pensamentos do pássaro apenas projeções dos seus próprios pensamentos.
Instaurou-se a noção de pecado, e pior, a visão deturpada dele. O homem valorizava seus gestos, e o outro que agia diferente tornou-se pecador. Cada homem passou a ser o acusador e o juiz do outro. Pré-julgamentos tornaram-se hábito. Julga-se a roupa... do outro, o pensamento... do outro, a exposição... do outro, as ações... do outro. Dirige-se ao outro um olhar condenador, de quem é dono da verdade. Olhar para si mesmo é doloroso, é enxergar seus defeitos. Perceber que as ações que condena no outro, são ações que deseja praticar.
Observa-se tudo no outro. O que não se observa é que o pássaro já parou de cantar. Vive triste na sua gaiola, esperando o momento da liberdade, desejoso de ser novamente presença apaziguadora e inquietante, de ser novamente vários e único ao mesmo tempo. O homem canta sua própria canção e finge estar ouvindo o pássaro cantar.
Já faz tempo que quero abrir a gaiola do pássaro. Será que consigo?

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Raul Seixas, captando a variedade dessa força-presença um dia escreveu a mais bela das canções em minha opinião. Você, sinta-se livre para discordar disso e de tudo.

“- Eu que já andei pelos quatro cantos do mundo procurando, foi justamente num sonho que Ele me falou:

Às vezes você me pergunta
Por que é que eu sou tão calado,
Não falo de amor quase nada,
Nem fico sorrindo ao teu lado.

Você pensa em mim toda hora.
Me come, me cospe, me deixa.
Talvez você não entenda,
Mas hoje eu vou lhe mostrar.


Eu sou a luz das estrelas;
Eu sou a cor do luar;
Eu sou as coisas da vida;
Eu sou o medo de amar.

Eu sou o medo do fraco;
A força da imaginação;
O blefe do jogador;
Eu sou!... Eu fui!... Eu vou!...

Gita! Gita! Gita!
Gita! Gita!


Eu sou o seu sacrifício;
A placa de contra-mão;
O sangue no olhar do vampiro
E as juras de maldição.

Eu sou a vela que acende;
Eu sou a luz que se apaga;
Eu sou a beira do abismo;
Eu sou o tudo e o nada.


Por que você me pergunta?
Perguntas não vão lhe mostrar
Que eu sou feito da terra,
Do fogo, da água e do ar!

Você me tem todo dia,
Mas não sabe se é bom ou ruim.
Mas saiba que eu estou em você,
Mas você não está em mim.


Das telhas eu sou o telhado;
A pesca do pescador;
A letra "A" tem meu nome;
Dos sonhos eu sou o amor.

Eu sou a dona de casa
Nos pegue pagues do mundo;
Eu sou a mão do carrasco;
Sou raso, largo, profundo.

Gita! Gita! Gita!
Gita! Gita!


Eu sou a mosca da sopa
E o dente do tubarão;
Eu sou os olhos do cego
E a cegueira da visão.
Mas eu sou o amargo da língua,
A mãe, o pai e o avô;
O filho que ainda não veio;
O início, o fim e o meio”.