“Decifra-me ou
devoro-te”, assim disse a Esfinge a Édipo. “Decifra-me e devora-me”, assim
dizemos uns aos outros com nossos olhares o tempo todo. Desejamos sermos
compreendidos, decifrados. Lutamos por um lugar na atenção do outro. Desejamos
encontrar no outro um pouco de nós. Necessitamos sermos incorporados pelo
outro.
Um amigo meu,
uma vez, contou-me que levou sua família para almoçar em um restaurante novo na
cidade. Chegaram ao lugar, escolheram uma boa mesa, e conversa vai e conversa
vem, mas nada do garçom lhes brindar com a refeição do dia. Meu amigo já estava um pouco incomodado com
aquilo. Estava com muita fome e imaginou que toda a família estivesse também. Inquietou-se
com a demora. De repente, no meio de uma conversa modesta, seu pai lhe disse:
“Isso que é bom. A espera”. Meu amigo, aliviado, entendeu o que o pai quis
dizer. Na espera pela refeição, colocaram o papo em dia, puderam se olhar nos
olhos, rir das esquisitices de família, revelar histórias desconhecidas. Conviveram. Alimentaram-se uns dos outros.
Oportunidade para se decifrarem e se devorarem.
Em rituais antropofágicos,
o ato de alimentar-se do corpo do prisioneiro rival, adquiria um sentido
místico de apropriar-se das suas virtudes, da sua coragem, da sua força. Alimentar-se
do outro era sinal de respeito, apreço pelos seus feitos realizados em batalha.
É tão difícil
parar para ouvir o outro atentamente, devorar com o olhar, decifrar expressões.
O outro sempre demanda algo de nós, e muitas vezes sequer percebemos sua
demanda, que na maioria das vezes, é simplesmente de afeto, uma busca por um
olhar, por uma escuta. Na correria do dia-a-dia, não nos permitimos admirar o
outro, e assim, não sentimos a vontade de devorá-lo. Deixamos de acolher em nós
suas histórias, suas angústias, mas também sua coragem, sua força.
Olhar e ouvir
são processos que se tornam místicos a partir da admiração. Quando se admira
aquele a quem se escuta, suas palavras promovem transformações dentro de nós.
Quando se admira aquele a quem se olha, seu rosto, gestos, expressões imprimem-se
na nossa memória. Difícil é esquecer aquele a quem se admira! Ritual
antropofágico! Alimento-me da palavra e da memória do outro.
“Tomai e comei”.
Alimentarmos uns dos outros: os nutricionistas recomendam esta refeição!