terça-feira, 31 de julho de 2012

Um pedido de desembaraço


A menina, tão pequenina, tinha cabelos enormes e lisos. Sua mãe, para evitar embaraços, fazia tranças todos os dias em seus cabelos, o que justificava seu apelido: Rapunzel. Isso era um prato cheio para os meninos da escola que adoravam tirar sarro das meninas. Era só ela chegar pra começar a euforia. É claro que ela, embaraçada com a situação, desfazia a trança, e com seus cabelos soltos saía para brincar com as colegas na hora do recreio. Quando chegava em sua casa, a mãe olhava meio de lado, vendo seus cabelos soltos, e já imaginava a situação: passaria um longo tempo com o pente nas mãos tentando tirar os nós dos cabelos da filha. Quanto embaraço!
“Eu te amo”. “O problema não é você, sou eu”. “Está demitido”. “Não passou de ano”. “Seu pai faleceu”. “Essa dor vai passar”. “Casa comigo?”. “Vamos terminar”. “Adeus”. Quanto embaraço! E haja face ruborizada!
Na teia que tece a vida, deparamo-nos com muitos embaraços. Tudo depende da forma e do momento que falamos ou ouvimos. Muitas vezes, as palavras não conseguem expressar aquilo que gostaríamos, da forma que gostaríamos. Muitas vezes não conseguimos ouvir o que palavras, mesmo que bem colocadas, querem dizer, por serem duras demais.
Palavras confortam, abraçam, afagam, iluminam estradas, provocam felicidade, e também são capazes de causar feridas irremediáveis, que permanecem abertas por um longo tempo, e mesmo quando fecham, cicatrizam, mas não deixam de incomodar.
Lembro-me do dia que o meu pai faleceu. Quando recebi os telefonemas da minha mãe, que tentava me dar a triste notícia, não quis atender. Meu coração já sabia. Ele já me dizia. E eu não queria ouvir aquelas palavras. Eram pesadas demais para eu suportar. Quando cheguei na casa da minha mãe, minha avó falou. E nunca me saiu da cabeça aquela voz, até mesmo suave, proferindo o que eu não queria ouvir.
Alguns embaraços da vida, como os dos cabelos, com dedicação acabam por se desfazerem. É claro que exige dedicação, explicações, pedidos de desculpas, muita análise, e isso causa certo desgaste. Desembaraçar dói. Puxa os cabelos. Mexe com as tramas da vida. O tempo ajuda muito. Tempo, que é nossa perversa prisão, e que por vezes também se faz de senhor da sabedoria.
Chega um momento no qual as próprias lágrimas se cansam de cair. Muitas vezes, quando nos deparamos com o embaraço, surge também um embaçar nos olhos. É muito difícil enxergar com olhos embaçados! É necessário que eles sejam lavados. As lágrimas, inevitáveis, devem cair. E quando ficam cansadas de cair, a visão é retomada, e o que estava turvo, torna-se claro e limpo. É possível enxergar novamente, e assim retornar ao caminho.
E em ritmo de samba, com o coração na mão e a alma na voz, como meu pai bem faria, é possível cantar: “Vai passar esse meu mal estar, esse nó na garganta. Deixa estar. O próprio tempo dirá. Água demais mata a planta”.

segunda-feira, 30 de julho de 2012

Como falar de amor?


É possível entender o amor? Junto-me ao coro da Legião para dizer: “Quem inventou o amor, me explica, por favor”. Que sentimento mais complicado (e às vezes até simples demais – paradoxal), e tão sublime, que não se permite ser explicado em palavras. Tantas são as palavras que temos a nossa disposição. A linguagem é tão rica, mas às vezes tão insatisfatória para representar aquilo que sentimos. Quando se tenta prender o amor em palavras, elas fogem. É como se não pudessem se permitir traduzir o amor, por este ser tão mutável, e por se manifestar em cada pessoa de maneira ímpar, e ser agente transformador a cada dia.
O Amor, velho senhor meio caduco, não é um sujeito fácil de entender. Mora numa casinha muito simples, nem mobília e nem energia elétrica tem. Apenas uma vela tentando iluminar a casa, e esta, fica depositada no chão, em um cantinho, bem de lado. Quase não ilumina. Mas tudo bem. O Amor já está meio ceguinho mesmo. O que acontece é que ele adora jantar a luz de velas, e por isso, mesmo sem enxergar, faz questão de manter a chama acesa. Na sua casinha, tem uma vitrola também. Nas noites, gosta de sentar na varanda e contar as estrelas ao som de Roberto Carlos... “como é grande o meu amor por você”, Vinícius de Moraes... “eu sei que vou te amar”, Tom Jobim... “ah, se já perdemos a noção da hora”, Chico Buarque... "não se afobe não, que nada é pra já". Há quem diga que ele é um pouco antiquado, brega. Mas quem liga pra isso?
Às vezes se faz de criança, pirracenta e mimada. Quer por que quer aquela pessoa, e não descansa enquanto não obtiver pelo menos um olhar. Faz de tudo pra isso. Gosta de chamar a atenção. Quando está assim, como criança, o Amor também se torna muito brincalhão, parece vivenciar tanta felicidade, que anda pelas ruas cantarolando, com um risinho no rosto. Parece não caber em si mesmo!
Por vezes o Amor, vestindo-se de jovem adolescente, rende-se ao drama. Parece até gostar de sentir dor de cotovelo. Usa a vitrola do “velho Amor” para ouvir músicas de abandono, desespero, amor perdido, amor não concretizado, amor que não deu certo. Gosta de ouvir no último volume. Se não bastasse ouvir, desembesta-se a cantar. E canta alto, quase gritando, embargando a voz com soluços e lágrimas. Chora na frente do espelho, para ver suas lágrimas caindo. Tem horas também que se tranca no quarto e emudece. Faz seu travesseiro de companhia e abre-se apenas para os pensamentos que parecem uma avalanche.
Já quando quer ser maduro, o Amor se lança numa estrada e segue sem muito rumo, para refletir. Gosta de refletir, pensar na vida, nas atitudes que tomou, e pede desculpas sempre que necessário. Evita discussões desnecessárias. Entende seus limites e o limite do outro. Respeita. Compreende. Faz carinho. Desperta desejos, mas não toma ninguém por refém. Valoriza a liberdade. Liberdade de escolher estar junto ou não. Maduro, o Amor valoriza cada instante vivido e não se importa tanto com os julgamentos alheios.
Amor, tão mutável! Ora maduro, ora criança, causa tanta confusão dentro de nós! Tão difícil entendê-lo e tão inimaginável viver sem ele. Mas que delícia é transformar-se junto com o amor. Se ele não cabe em palavras, cabe em lábios mudos, abraços apertados, mãos que se apertam e pés que seguem juntos, lado a lado, num caminho que não se sabe onde vai dar.

sábado, 28 de julho de 2012

Sobre o desabrochar das flores


Carrego uma rosa tatuada no braço e um desabrochar no coração.  Tristes são aqueles que mantêm uma amargura no olhar, que fazem um julgamento implacável por causa da imagem, e não enxergam o desabrochar. Talvez porque o desabrochar seja um movimento tão profundo, que somente olhos sensíveis são capazes de perceber.
Desabrochar exige crescimento e também a capacidade de perder uma ou outra pétala pelo jardim. Desarmar-se de si mesmo, e tentar encontrar-se novamente no inesperado. É como dizia Florbela Espanca, “que me saiba perder... para me encontrar”. E cá pra nós, como é difícil perder pétalas e permitir-se desarmar! Perder pétalas é como deixar as muitas máscaras caírem do rosto. Deixar a alma limpa, sem maquiagem. Perder a vaidade. Pelo menos tentar sentir o que a alma transmite, tal como ela é, mesmo que isso doa, machuque. Tem coisas da alma que dói muito escutar. Haja análise!
Para desabrochar é necessário movimento, é preciso desejar. Uma rosa desabrocha por desejar mostrar suas pétalas, e em cada pétala uma história, em cada pétala um universo escondido e revelado. Em cada pétala um desenho da vida que aos poucos se deixa ver. A cada dia a vida é rabiscada como um desenho, e em cada dia surge uma nova chance de desabrochar.
Há ainda muito no mundo que desabrochar. Há muitas pétalas a se perderem. Intolerância, preconceitos, agressividade, autocentramento, falta de cordialidade. Pessoas que andam tão depressa que não conseguem parar, nem que por um momento para vislumbrar mudança. Não se pode perder em uma sociedade que preza sempre pelo ganho, pela vitória, pelo lucro. Mas será que é tão difícil entender que há casos nos quais perder é ganhar?
Há tanto ainda que desabrochar dentro de mim. Espero que a rosa tatuada no meu braço faça-me lembrar sempre da beleza escondida no ato de desabrochar.

quinta-feira, 26 de julho de 2012

Muita calma nessa alma! O relógio e o seu coelho branco.


Muita calma nessa hora! Muita calma nessa alma!
O livro “Alice no país das maravilhas”, de Lewis Carroll, tem como uma das personagens um coelho branco que anda pra cima e pra baixo com seu enorme relógio de bolso. O que ele sempre diz? “Estou atrasado, estou atrasado”! Assim como nós.
Andamos sempre com uma sensação de atraso.  O mundo está assim, tão agitado. Acordamos com o despertador do celular, colocamos o café goela adentro e saímos correndo para pegar o ônibus – ou tirar o carro da garagem. Não importa o meio de transporte, ambos terão que enfrentar o mesmo trânsito caótico. Chegando ao trabalho, tudo deve ser cumprido de forma a otimizar o tempo, afinal, é tanta coisa pra fazer. Na hora do almoço, fast food. Voltamos para o trabalho. Cafezinho? Só se for bem rapidinho. Saímos do trabalho. Uma hora esperando o ônibus. Meu Deus, quanto tempo perdido! Pegamos o ônibus. Lotado. Não dá nem pra ler aquele texto que fala sobre uma determinada questão profissional. Mais tempo perdido – aí sim percebemos a vantagem de se andar de carro. Chegando em casa, hora de tomar um banho relaxante, depois comer alguma coisa pra forrar o estômago. Enfim, descansar? Que nada! Hora de ler aquele texto que não deu pra ler no ônibus. Depois da leitura, programar o trabalho do dia seguinte. Agora sim, descansar? Não. Apagar na cama! E quando se tem filhos? E quando se trabalha e estuda? E quando... e quando? Falta hora pra tanta coisa! Às vezes dá vontade de gritar: “Pare o mundo que eu quero descer”!
O mundo anda muito depressa e parece não esperar meus passos cansados. Falta hora pra tanta coisa, mas na verdade eu gostaria que faltasse hora pra tanta vida! Estamos aprisionados em uma prisão chamada tempo e o carcereiro da prisão é o relógio, que com seu tic e tac, nos lembra a todo instante da nossa serventia ao supremo deus Chronos. Até mesmo os nossos momentos de diversão são programados rigorosamente.
E o pior, é que o próprio tempo é uma incógnita. O que seria, afinal, se sempre tão relativo? Mas a sociedade teima em espremê-lo e fazê-lo de prisão. Teimamos em carregar conosco o carcereiro. Somos jogados na prisão por nós mesmos e engolimos a chave.
Quero liberdade já! Quero acariciar minha alma calejada de tanto correr para vencer os atrasos. Quero ler os livros que ainda não li. Quero ler os livros que já li, mas que são dignos de releitura. Quero fazer trabalho manual. Quero sair sem destino, de mãos dadas com alguém que gosto – com um amigo, com meu amor. Quero sentir o vento nos cabelos. Ir para a praia, parar de frente para o mar e ficar admirando. Sentar no sofá de casa e assistir a filmes na televisão. Sair pra dançar. Visitar amigos. Enfim, estou querendo mesmo é gastar tempo! E quem quiser que critique!
Decidi saborear a vida, como alguém que saboreia um delicioso jantar. Devorando-a devagar, apreciando o gosto de cada momento, tentando descobrir cada ingrediente que a torna mais saborosa.
E que passem coelhos brancos falando sobre atrasos perto de mim. Eu não vou nem ligar!

quarta-feira, 25 de julho de 2012

Vozes para respirar...


Acordei num ímpeto. Estava no quarto. Ainda bem. Corpo suado, boca seca, coração acelerado, respiração ofegante, confusa. Tive um pesadelo.
Eu, nos meus 27 anos, tive vontade de correr para a casa dos meus pais, entrar no quarto deles, cutucar meu pai e olhá-lo com olhos de criança assustada pedindo consolo.
Quando eu era criança tinha muitos pesadelos. E desse jeitinho eu fazia. Meu pai se levantava – às vezes minha mãe – e me levava novamente para o quarto, me deitava na cama e começava a conversar, até que eu adormecesse novamente. Aquela voz me dava tanto conforto, tanta segurança, que meu coração se acalmava, e eu dormia tranqüila até o dia amanhecer.
Existem vozes que nos acalmam. Para quem já perdeu os pais, lembrar-se até mesmo da voz brava, de advertência por causa de alguma travessura, conforta. A voz de um amigo, mesmo que por telefone, em dias de euforia, ou em dias aborrecidos, é algo muito agradável, modifica o humor! Para aquele que está longe de casa, lembrar dos gritos da vizinha, a chamar pela filha que brinca na rua, aperta a saudade. Para quem não escuta, os movimentos dos lábios e das mãos do outro, apaziguam a alma. Comunicar-se é aproximar-se, permitir-se encontrar com outro.
Somos um todo de sentidos. Mãos para tocar, sentir. Mãos para falar. Lábios para falar, mas também para tocar e sentir. Os apaixonados entendem muito bem isto. Tantas são as vezes nas quais os beijos revelam mais que as palavras!
Sinto, falo, ouço, degusto com meu corpo inteiro. Meu corpo introduzindo-me no campo da linguagem. Linguagem que me liga ao outro, que produz laços. Linguagem que também afrouxa laços, por ser tão incompreendida. Quando falo, nem sempre falo da maneira que queria dizer e você nem sempre entende aquilo que foi revelado por mim.  E assim, nascem os conflitos, desentendimentos, os afrouxamentos dos laços, quando não sabemos lidar com situações assim.
Mas hoje quero dizer de vozes que acalmam. Como é bonito ver uma mãe acalentando seu bebê, cantando uma cantiga de ninar. O bebê aos poucos vai adormecendo, seu corpo vai ficando molinho, e quando menos se imagina, lá está ele, completamente entregue aos braços da mãe! A sensação que produz é de proteção extrema. Não há o que temer diante daqueles braços que o seguram, diante daquela voz de paz.
E o que dizer das músicas? Algumas músicas acariciam a alma. Produzem o mesmo efeito da mãe que acalenta seu bebê. Quando preciso acalmar-me, coloco uma música gostosa, que me faça lembrar algum momento agradável. Pronto, está feito, vejo-me entregue aos braços daquela poesia cantada.
Vozes que acalmam nos fazem produzir sonhos, mesmo quando acordados. Quantos pesadelos que temos acordados! Momentos que não gostaríamos que acontecessem, que nos fazem transpirar, perder a respiração. É como se estivéssemos no mar e de repente afundássemos. Mas, então ouvimos uma voz, aquela voz tão esperada, e ela atua como uma mão que nos puxa de dentro da água, e nos devolve o ar!
Por favor, devolva-me o ar. Deixe-me ouvir sua voz e faça-me sentir a indescritível sensação do ar entrando em meus pulmões. Comunicar-me com você, aproximar-me de você, devolve-me a paz, devolve-me a vida. Meu encontro com sua voz me faz viver.
Uma voz amiga é indispensável para respirar num mundo que tenta, o tempo todo, nos tirar o ar.
Precisamos de vozes para respirar!

terça-feira, 24 de julho de 2012

Um olhar sobre o olhar...


Fico imensamente feliz ao olhar-me no espelho e perceber o quanto mudei. Meus cabelos estão mais ajeitados, mais controlados, meu corpo está mais cheinho, meu rosto sustenta um sorriso com aparelho... quanta mudança! Mas emociono-me mais com a mudança do meu olhar. Perco-me ás vezes lembrando-me das convicções que tinha, das músicas que gostava, do meu gosto pela comida, dos ídolos que admirava.  Hoje as convicções não são as mesmas. Eu não sou mais a mesma. Mudei meu olhar.
É certo que tudo o que já vivi, que tudo o que já acreditei, contribuíram com isto que sou agora.  Sei também que o que penso agora, um dia poderá mudar. São tantas as verdades que carregamos dentro de nós! Qual é a certa, afinal? É impossível tentar desvendar o ser humano apenas por um único ponto de vista.
Dos ídolos que eu admirava, alguns ainda hoje sustentam meu encantamento. Dentre eles, aquele moço meio esquisito, de cachinhos negros na cabeça, que dizia ter nascido há 10 mil anos atrás, e que preferia ser uma metamorfose ambulante a ter aquela velha opinião formada sobre tudo. Por que será que ainda me vejo encantada por ele? Eu também sou metamorfose ambulante, graças a Deus!
Abrir-se para discutir opiniões diferentes, assuntos diferentes, e através disso até mesmo ser capaz de mudar um ponto de vista, não é sinal de fraqueza. Muito pelo contrário, é sabedoria, maturidade, generosidade com nós mesmos. Aumenta o nosso campo de conhecimento. Com a própria ciência não é assim? Tantas teorias afirmadas com o passar do tempo, mas quantas tantas outras também refutadas e modificadas. Ainda bem que não pensamos mais que a Terra é quadrada, e não pensamos mais que é sustentada por quatro elefantes em pé sobre uma grande tartaruga do mar.
Clarice Lispector, uma vez disse sentir-se caleidoscópica. Ora, é assim que me sinto também. Cada vez que me esforço a olhar para dentro de mim, vejo uma imagem diferente se formando. É sempre tudo novo. Algumas imagens carregando elementos de outras, mas sempre uma nova imagem.
Eu mudo. O meu olhar sobre mim muda. E então o meu olhar sobre o mundo também muda. Que magnífico é ver o mundo diferente a cada dia sob ângulos diversos de um olhar tão mutável. Como é bom viver a experiência de cada dia diferente. Cada dia um novo “eu” por se formar.
Ter um olhar engessado é muito triste. Talvez, vive-se mais facilmente com um olhar assim. Tudo sempre do mesmo jeito, uma rotina constante. Vida mais passível de planejamentos, organizações. Nada, ou quase nada, de frustrações. A vida é muito previsível.
Mas quando dispomo-nos a mudar nosso olhar, a vida torna-se mais dinâmica. Desprendemo-nos do jogo que nos liga a repetições. Cada minuto é uma chance de transformação. E quanta beleza existe na transformação!
Falando assim parece fácil, mas a mudança é fruto de um trabalho árduo. Mexer com paradigmas nem sempre é tão simples. Muitas vezes acontece lentamente e até dolorosamente. E às vezes o processo acontece de maneira tão sutil - mas que despende também esforço - que nem se percebe que está acontecendo. Aí um dia, você está na frente de um espelho e fica admirado por quanto está mudado! Seu corpo... quanta diferença.Cabelo mais ajeitado, corpo mais cheinho, sorriso com aparelho. E, lembrando de como era antes, constata: o que mais lhe comove reconhecer mudado é o olhar.

segunda-feira, 23 de julho de 2012

A partir da noite escura...


O sol nasceu e iluminou a escuridão. Mas tudo ocorreu em um processo.
Lembro-me de minha infância quando passava as férias na fazenda de um amigo do meu pai.  Não tinha postes de luz. Quando anoitecia, e olhávamos para fora de casa, víamos apenas o breu. No início das noites, a escuridão era assustadora, depois tornava-se apaziguadora, um momento de contemplação das estrelas, tão mais intensas naquelas noites quentes de verão.
Acordávamos muito cedo, ainda na escuridão. Esperávamos o dia sair para assistirmos ao espetáculo do leite saindo quentinho das tetas das vacas – para crianças, qualquer atitude cotidiana pode ser uma aventura.
Com o passar do tempo, ao nosso redor, as coisas ficavam mais claras, pouco a pouco. Via-se de perto os bancos na varanda, algumas árvores do quintal, a montanha logo a frente da casa. Depois, alguns detalhes se revelavam, como os desenhos talhados nos bancos da varanda, as flores pequeninas no jardim, os caminhos que se desenhavam nas montanhas. E assim acontecia. Um detalhe após o outro até que a paisagem pudesse ser admirada enfim. A claridade alcançava os nossos olhos. O sol iluminava a escuridão.
Muitas são as vezes que passamos por escuridão. E a escuridão, a princípio assustadora, esconde detalhes da vida tão difíceis de serem apreciados, mesmo quando a claridade reina. É necessário contemplar a escuridão para enxergar os detalhes que ela esconde.
O luto, o instante de tristeza, a ferida da alma, nos obriga a nos recolhermos em nós mesmos. Momento de reconhecer na escuridão a vida que nela existe (sentimentos, acontecimentos importantes e até despretensiosos). Na escuridão há vida. Quando finalmente despertamos para a sutil beleza da escuridão, o sol dá o ar da sua graça. É momento de recomeçar o dia!
Quando não suportamos, ou não admitimos a escuridão, passando por cima do luto, engolindo o choro, e engolindo tantos sapos que a vida inevitavelmente joga em nós, fantasiamos a claridade. Enxergamos a paisagem, mas passamos por cima da beleza que existe nos detalhes – mesmo que dolorosos.
Não passar pela escuridão é não se permitir amadurecer, é pular uma etapa necessária para o desenvolvimento da vida. O dia não se faz apenas de sol, claridade. Tudo é ciclo!
Claridade demais cega!

sábado, 21 de julho de 2012

Palavras da Janela

Uma janela tem como função proteger (do vento, do frio, do sol forte), mas o que encanta mesmo é a revelação que faz das paisagens. Para os que estão em casa revela montanhas, ruas, o homem levando sua filha pra passear, a mulher que passa apressada pra trabalhar. Para os que estão de fora, revela o cotidiano familiar, a dona Maria fazendo o café, a criança brincando no quarto, o filho estudando pra passar na prova.
Os olhos, janelas que conectam  o dentro e o fora, a alma e aquilo que a alma produz, encontram nas palavras uma maneira de revelação!
Como é paradoxal o ato de escrever, desenhar com letras aquilo que a alma transborda. Terrível por mostrar demais a essência daquilo que muitas vezes não suportamos admitir existir dentro de nós. Doce por  nos ligar ao outro - o leitor.
Escrever é expressar aquilo que vem da alma, e não estou falando apenas de poesia. Se bem que como apaixonada por poesias, devo admitir que sinto minha alma sair de mim ao debruçar-me sobre Camões, Drummond, Neruda e tantos outros. Mas também sinto minha alma tremer com o cotidiano descrito em palavras. Sinto minha alma salivar ao ler uma receita de frango com quiabo, sinto minha alma viajar ao ler sobre as aventuras de um amigo que está estudando na Índia, sinto minha alma se emocionar ao ouvir em forma de música escritos de amor.
Inclinar-se diante de um papel ou de um teclado de computador, é como fechar os olhos e explorar um mundo que se faz descoberto conforme as letras vão se desenhando. É escrever o fantástico e descobrir que o fantástico, a invenção, não é uma produção do acaso, mas de uma alma que deseja ser manifestada.
Creio também que escrever é como um desabrochar. Deixar mostrar as pétalas, abrir-se para a admiração ou para o estranhamento, exalar perfume. É um ato que desencadeia mudança. Revelar-se ao outro, expor-se à opinião alheia não é fácil. Colocar-se nu frente a olhos atentos é também ter coragem de tirar o véu que cobre as imperfeições. E como as imperfeições são intrigantes! E mesmo que nos desgastemos no ato de escrever, nunca seremos capazes de nos mostrar todo. Sempre há um a mais a ser revelado. Sempre há uma descoberta a se fazer, sempre há uma pergunta que espera uma resposta.
Clarice Lispector sabia bem a importância de expressar-se pelas palavras. Dizia ela: "enquanto eu tiver perguntas e não houver respostas... continuarei a escrever". Palavras que se montam a partir da janela.